quando paro e reflito, chego à conclusão de que sou o tipo de mulher que grande parte da sociedade convencionou chamar chata. acho que reconhecer assim, publicamente, é um grande passo. um desabafo? uma autoafirmação? sou cri cri (?), politizada, feminista, adoro debates e discussões. algumas pessoas queridas me acusam (injustamente) de querer sempre ter a última palavra.
está lá no houaiss on-line (fiz questão de conferir, chata que sou):
chato: 9. que ou o que aborrece, irrita, estorva
é isso: aborreço mesmo, perturbo, irrito – o que tenho pra falar é incômodo e eu insisto em sempre dizê-lo. sublinho que faço isso apenas quando é um assunto do meu conhecimento. há nove anos estudo quase diariamente uma gama de temas da área das ciências humanas, como língua portuguesa, literatura e crítica literária no geral, escolha lexical, análise do discurso, invisibilidade social, manifestações arísticas na sociedade, indústrial cultural, feminismos. é triste perceber que, na visão de muitos (não falo daquelas mesmas pessoas queridas acusadoras…), eu não deveria ser assim, com esses pensamentos todos. como tantas outras amigas incríveis que tenho. afinal, onde já se viu mulher questionar tanto?
o problema (problema?) é grande: nunca sei quando cessar a argumentação sobre o que penso, porque, além de tudo, me divirto. porém, isso pode ser enfadonho pra quem participa da conversa, pouca gente está interessada em de fato ouvir e discutir. ainda mais assuntos tão chatos e inúteis. é só conversa de bar. pra que se especializar nisso, estudar tanto? pra que servem as ciências humanas, no fim das contas?
aliás, adoro uma boa conversa. pelo menos, sou o tipo de chata (?) que tem uma vaga noção da própria “chatice” – isso deveria ser um atenuante ou só piora a minha situação?… a questão é a consciência do defeito (na opinião alheia) sem nenhuma atitude para abrandá-lo…

e ainda tenho visto uma mobilização e uma onda de críticas acerca da autoficção.1 saibam que “isso” é um gênero literário cujo reconhecimento se deu há algumas décadas. no mestrado, cursei uma disciplina inteiramente dedicada a ele. annie ernaux ganhou o nobel de literatura dedicando toda sua obra ao gênero que acabou por reinventar.
a quem o condena e diz, ao mesmo tempo, não saber do que se trata, tenho uma ótima sugestão: estude antes de dizer sobre aquilo que reconhecidamente não entende. indico, numa rápida lembrança, serge doubrovsky, autor que cunhou o termo, gérard genette e os primeiros estudos sobre a autoficção em si, roland barthes e o conceito de biografema. e há outros tantos que se relacionam ao estudar memória e atividade criativa, como eric kandel, neurocientista australiano ganhador do nobel de medicina em 2000 graças a suas pesquisas envolvendo células nervosas e transmissão de sinais no cérebro humano.
agora, se deseja permanecer na santa ignorância, é mais conveniente ter a humildade de uma glória pires e admitir que não é capaz de opinar…
ainda pensando sobre o assunto, o vídeo abaixo traz ótimas reflexões, mas está em francês. não sei se é possível legendá-lo. o título diz muito: as mulheres que escrevem são monstruosas.
SEI QUE O QUÊ NÓS MULHERES TEMOS A DIZER IMPORTA. é isso que incomoda os homens quando decidimos escrever nossas histórias de vida? que as mulheres levantem suas vozes, digam tudo pelo que passam, acusem-nos, reivindiquem o direito à memória (que é um exercício também imaginativo, como bem pude confirmar no curso com
)? e o que incomoda as mulheres que criticam o gênero autoficcional? alegrem-se: a coragem inicial de muitas de nós resultou em nossas forças. orgulhem-se! somos uma rede de apoio, somos entendedoras umas das outras, somos plurais e únicas e individuais e muitas. somos resistência. somos tantas!… somos todas.a propósito, vi na última aula de um dos cursos da
a frase:a função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer. (peter burke)
pois sejamos nós também historiadoras de um tempo presente e de uma memória feminina coletiva. deixemos atrás de nós as pegadas, os vestígios. as palavras. a História.
essa é a razão pela qual não pararei (pararemos) de lembrar.
é um ato de resistência.

sei que aborreço as pessoas também de outros modos. peço para ir embora no meio da sessão do cinema se não estiver gostando do filme, por exemplo. e ME aborreço também. sou particularmente chata em relação a dois assuntos: música e humor. me levanto e saio se a música estiver alta ou não for do meu agrado. peço para os motoristas de aplicativo abaixarem o volume e, mesmo depois de colocar os fones, insisto para que voltem a diminuí-lo – por que sempre voltam a subi-lo? eu peço de novo. e se de novo aumentarem, dou nota ruim e reclamo. aliás, sobre isso: não sou de lamentações sobre coisas comuns cotidianas – mas estou sempre lutando por meus direitos. já movi ação trabalhista (e ganhei), já comprei muita confusão. não fujo de uma boa briga.
mas, por incrível que pareça, tenho até um certo senso de humor, gosto de conviver com pessoas divertidas, engraçadas. surpreendentes. gosto da leveza e das piadinhas da convivência. meu problema com humor é outro: dificilmente acho engraçado algo a que assisto ou leio. juro, é verdade. quisera eu achar mais graça nessas coisas… mas é raro. fomos ao cinema ver O esquema fenício, com Benicio del Toro, Tom Hanks, Scarlett Johansson, Willem Dafoe, enfim… grande elenco. não fiquei até o final.
reconheço aqui esta minha peculiaridade perturbadora. tentei assistir ao filme inteiro, só que não rolou – às vezes faço isso: insisto um pouco, mas é bem complicado. humor pastelão? passo. humor estadunidense tipo american pie? passo! humor de comédia romântica? próximo!
mas o que não me desce MESMO é aquele humor escrachadamente (auto)depreciativo. é sério que a pessoa diz coisas horríveis sobre ela mesma e os outros no intuito de ser engraçada?… acho tão problemático! acredito, sim, que em muuuuitos casos a brincadeira tem um fundo de verdade. pessoas que insistem em jogar na cara certas coisas; se o Outro se ofende, escondem-se atrás de eu só estava brincando, credo! pois sim, caro amigo, diga logo o que realmente quer dizer, entende? se não sabe como, terapia é altamente indicada nesses casos. aliás, ajuda também a superar a autodepreciação.
vamos pensar juntes: será que rir sempre, de si mesma e dos Outros, não importa à custa de quê, é a melhor solução? será tão benéfico dizer coisas horríveis por aí?
ACHO QUE MUITAS VEZES AS PESSOAS PERDEM OPORTUNIDADES PRECIOSAS DE FICAR EM SILÊNCIO.

claro que se aprendemos a rir com leveza dos acontecimentos, o fardo se alivia. e muito! o que não entendo é esse achincalhar em nome de ser engraçada. no meu longo período de terapia, aprendi o contrário: a olhar para a Helena do passado com gentileza e sem tanto julgamento. a ser verdadeira e sincera com doçura. e a não me fazer motivo de piada. não, não dou a ninguém o direito de rir de mim e fazer troça. nem a mim mesma. não que isso signifique alguma coisa quando envolve outra pessoa: quem assim o desejar, o fará. sem meu aval, muito menos com minha cumplicidade. não comungo a ideia de uma tiração de sarro indiscriminada apenas por divertimento. podemos ser mais inteligentes, não podemos?
acho que é isso: gosto mais da espirituosidade, ao invés do escancaradamente engraçado. para que ser óbvio? não me agradam as obviedades. elas, todo mundo sabe. gosto de sutilezas, nuances, ironias. do que não se pode exprimir, dos enigmas, dos mistérios. do in son dá vel.
espirituoso: 3. que é inteligentemente engraçado; que é vivaz, sutil, preciso e provocador de riso.
não, leitora, não é esnobismo da minha parte. não seguro o riso de propósito para fazer um ar de inteligência superior à la Pondé (esse sim o tipo chato em TODOS os aspectos). eu apenas tenho de conviver condenada à minha chatice mesmo.
avisei desde o começo.
Meu livro, um sonho de infância, foi publicado pela Ópera Editorial. Você pode comprar direto comigo um exemplar pelo meu perfil do Insta ( @hsimoesmiranda ) que eu envio para você um exemplar com dedicatória ou no site da editora.
Olha o que a @so_phiacastellano escreveu sobre minha obra:
Este é um livro que te conquista logo nas primeiras páginas. De leitura fácil e deslizante, a autora te convida para uma saborosa jornada nas entranhas cruas de São Paulo, centro, zona leste e seu coração. Aqui, lê-se as mais vívidas memórias de infância, juventude e vida adulta.
Tais crônicas crescem e se revelam junto com sua autora, transpassando para quem lê o olhar sensível e acurado das maravilhas poéticas e peculiares de um cotidiano citadino. Impossível não se deixar seduzir pelos períodos sinestésicos, metafóricos e de metalinguagem que Helena propõe, pois ela brinca com as palavras e figuras de linguagem nos conduzindo para seu sereno universo que por vezes é assustador.
Sei que já foi, mas ficou no YouTube! Foi um bate-papo gostoso com a Profa. Dra. Lilian Viana, mediado pela Profa. Ma. Charlene Lemos. Assista aqui.
para saber do que se trata o conceito, dê uma olhadinha: autoficção na wikipedia. e sugiro que ainda pesquise mais!
Esse texto é um abraço. Nao estou sozinha sendo chata no mundo. Sejamos chatas, então! Um beijo saudoso! Yasmin Gadêlha
O modo como o Kandel vê a memória é mesmo encantador! :)